Lula, o Capitão Dreyfus e a imprensa

Este blog tem compromisso com a garantia dos direitos democráticos ameaçados. É o motivo para a divulgação que faço aqui do livro com memórias de família colhidas de um tempo que hoje parece se repetir |

(Artigo atualizado em 20/09/2022)

Exatos 45 anos separam duas cartas aos brasileiros em defesa da democracia e do Estado de direito. A primeira, de 11 de agosto de 1977, só atingiu o objetivo uma década depois, em 1988, com o gesto teatral de Ulysses Guimarães agitando na mão um exemplar da Constituição Cidadã aprovada. Seu discurso foi eloquente: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. 

A segunda carta, lida no 11 de agosto deste ano, com divulgação mais concorrida que a anterior, repete o sentimento expresso pelo doutor Ulysses no século passado. O objetivo agora com ampla cobertura da TV Globo e demais órgãos de imprensa é defender a vigência das conquistas de 1988 sob ameaça de Bolsonaro e suas quatro linhas de tarouquices. 

O empenho da Globo evidencia o paradoxo vivido pela chamada mídia corporativa. Os mesmos âncoras do Jornal Nacional que explicam agora toda noite com didática de mestre escola as virtudes da Constituição e da democracia aparecem pouco antes no horário eleitoral da TV para dar credibilidade à campanha de Bolsonaro que promete enfiar as instituições no quadrilátero constitucional da sua lavra. São imagens antigas dos tempos em que a Globo dava prêmio Faz Diferença ao juiz Moro por ter montado em Curitiba o processo para criminalizar o ex-presidente Lula e todo o PT. 

Hoje a Globo esconde seu antigo premiado, envergonhada da sua exposta palermice e ignorância jurídica, além do apoio proclamado pelo atual candidato a senador à continuidade do governo Bolsonaro e consequente destruição do regime democrático conquistado em 1988. 

 Poderemos ter pela frente mais dez anos de luta arriscada como em 1977? Difícil prognosticar, porque não bastará chegar sem conturbação às eleições de outubro, garantir sua lisura e a posse dos eleitos. Apenas impedir a fraude da urna fraudada caso Lula vença ficou insuficiente. É preciso assegurar depois a viabilidade de um novo governo que conserte o estrago deixado. Não será tranquilo. 

Além de apoio empresarial, militar e miliciano, Bolsonaro conta com pelo menos 50 milhões de votos, conforme indicam de maneira consistente todas as pesquisas eleitorais. Ou seja, um terço do total de eleitores apoia ou se dispõe a tolerar a continuidade das manifestações diárias de vulgaridades, mentiras, obscenidades e ignorância. Desgoverno e miséria se alastraram. A incitação à violência e ao obscurantismo da intolerância religiosa resultaram na deformidade mental de pessoas e setores da sociedade. O transtorno social ainda pode ter cura, mas deixará sequelas.

A primeira ação sanitária efetiva foi a nova carta do 11 de agosto com mais de um milhão de signatários. Reuniu em poucos dias líderes dos sem-teto e sem-terra a grandes banqueiros, a empresários da indústria e serviços, além de sindicalistas, profissionais liberais e estudantes.  Essa aliança inusitada reforçou a frente democrática que se consolida em torno da campanha presidencial de Lula. Resultou na reintrodução respeitosa do ex-presidente em cerimônias do mundo oficial de Brasília.  Ante um Bolsonaro carrancudo, Lula foi centro das atenções no espetáculo da posse de Alexandre de Moraes no TSE. Pelas câmeras da Globo e resto da imprensa, sua importância pública tornou-se incontestável

Contudo, para muitos na mídia tradicional, blogs conservadores e congêneres, continua difícil reconhecer a consagração da liderança de Lula. Sobrevivem em jornais, emissoras de rádio e TV, os inconformados viúvos e viúvas da falecida e enterrada Lava Jato. Insistem em sustentar, como a Folha, que “Lula não foi condenado, mas também não foi inocentado”. Ou como o Estadão que minimiza simples “falhas processuais”. Esses embustes de raciocínio jurídico vêm embrulhados num fantasiado jornalismo independente no qual o ex-presidente continua estigmatizado e o seu partido criminalizado pelos que bateram bumbo durante sete anos para o juiz Moro com seu bando de procuradores cúmplices escolhidos a dedo. A burla tornou-se a derradeira tentativa na propaganda eleitoral de rádio e TV para salvar Bolsonaro da prevista derrota nas urnas.  

Lula foi tachado de corrupto, culpado e condenado antes de julgado, nos principais veículos de mídia. Sem falar das fake news espalhadas pelos tios e tias do WhatsApp.  A campanha diária e orquestrada de um jornalismo sob encomenda ficou insustentável após as revelações da Vaza Jato. A farsa acabou escancarada, porém o dano causado não teve ainda reparo.  O ódio que elegeu Bolsonaro continua disseminado e resultou no atual desastre civilizatório. 

Há precedentes históricos parecidos com a Lava Jato. No que se refere à sordidez da cobertura jornalística, é incrível a semelhança do julgamento viciado de Lula em Curitiba com o caso Dreyfus, um oficial judeu do Estado-Maior francês acusado falsamente de passar segredos militares à Alemanha. A acusação estava impregnada de antissemitismo. Aconteceu há mais de um século. Reproduzo a descrição que o escritor e jornalista William Shirer faz do papel da imprensa daquela época. É parte de sua obra A queda da França sobre o colapso da Terceira República em 1940:

“Antes até do julgamento realizado pela corte marcial, ele (Dreyfus) foi condenado uma centena de vezes pela imprensa parisiense, cuja irresponsabilidade e venalidade auxiliavam a envenenar a sociedade francesa sob o governo da Terceira República a ponto de não mais se poder curá-la. O próprio Exército alimentava a imprensa. Oficiais de alta patente plantavam nos jornais matérias com provas imaginárias da traição de Dreyfus”.  

A inocência do oficial ficou comprovada, depois da condenação. Retornou da colônia penal da Ilha do Diabo onde estava confinado. O verdadeiro espião fora identificado, mas só 12 anos depois o Exército reabilitou o inocentado. A revisão do processo exigiu muita coragem dos que a reivindicavam. O escritor Émile Zola se exilou na Inglaterra para não ser preso por redigir e publicar o seu J’Accuse, denunciando a fraude e apontando os responsáveis.

Apesar da revisão processual e reabilitação militar, o ódio e preconceito insuflados pelo reacionarismo antirrepublicano prevaleceram. O caso Dreyfus erodiu a sociedade francesa por décadas mesmo após o perjúrio e falsidade dos depoimentos contra ele serem fatos comprovados. Dividiu famílias e desfez amizades. Resultou em episódios de violência. Contribuiu para a deterioração política e da convivência social que antecederam a rápida rendição para a Alemanha no começo da Segunda Guerra Mundial seguida do colapso da Terceira República substituída pelo regime de colaboração com o nazismo do marechal Pétain.

A Lava Jato e seus resíduos empesteiam o convívio dos brasileiros há oito anos. É um período bem inferior ao dos conflitos raivosos em torno do caso Dreyfus que dividiram a França em duas facções inconciliáveis até a derrocada da Terceira República. No Brasil, ainda há tempo para evitar uma desconstrução total da coexistência civilizada e das garantias democráticas conquistadas em 1988 com o gesto teatral de Ulisses Guimarães ao proclamar seu ódio e nojo à ditadura.

Um passo importante para voltar à normalidade da democracia e assegurar o Estado de direito sempre citado nos editoriais dos principais órgãos de imprensa é o reconhecimento dos erros por eles cometidos e que contribuíram para o desastre da eleição de Bolsonaro em 2018. A autocrítica dos grandes grupos de mídia é imprescindível. Precisam parar de enxovalhar a única liderança capaz de reunir as forças necessárias para evitar que o país e sua população afundem na pocilga de uma nova ditadura.