Reproduzi e interpretei memórias que não são minhas sobre um tempo e acontecimentos que não testemunhei. Acrescentei informações colhidas nos livros aos relatos ouvidos dos meus pais. Não se notabilizaram por feitos como os registrados em biografias de personagens famosas. Legaram, no entanto, narrativas pessoais de uma geração que conheceu de perto o lado mais cruel e desumano da humanidade.
As lembranças de minha mãe, nas próximas páginas, cobrem apenas parte de sua vida. É um relato manuscrito das recordações de infância e juventude. Ela enfatiza o período de três anos em que conseguiu escapar duas vezes da ocupação nazista – primeiro na Áustria, em 1938, e depois na França, em 1940. Na fuga e emigração para o Brasil conheceu seu futuro marido, meu pai, que escapara do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália. Tomei a liberdade de ajeitar um texto que ela, em seu português e estilo peculiares, escreveu em 1992. Mantive-me fiel ao original, mas não me limitei a isso.
Também tentei, passados 28 anos, complementar com mais informações essa história ouvida repetidamente ao longo de todo o complicado convívio que tive com Elisa Glasberg, nascida Klinger, a minha mãe. É o relato dos que sobreviveram a uma tragédia e perderam as raízes no passado de uma Europa idealizada. Minha mãe nunca conseguiu sentir a tranquilidade de ter um vínculo com algum lugar, tanto durante a juventude na Áustria, quanto no Brasil, onde se fixou por quase trinta anos. Procurou também se integrar em Israel, para onde emigrou após a morte de meu pai em 1968. Não desistiu, mas terminou a vida solitária.
Para completar a descrição inicial que ela faz de Viena, a partir do fim da monarquia dos Habsburgos e do período entre as duas guerras, recorro aos relatos ouvidos de meus avós maternos e de outros que com eles conviveram. Tomo emprestadas ainda partes das memórias de Stefan Zweig, escritas em 1942, pouco antes de seu suicídio em Petrópolis. Com o título em português O mundo que eu vi, ele dá seu testemunho da vida intelectual e ligação com as artes da burguesia judaica da capital austríaca no início do século passado.
Uso também a história dos Ephrussi, do fascinante livro A lebre com olhos de âmbar, publicado há poucos anos na Inglaterra e traduzido no Brasil. Seu autor, Edmund de Waal, descende do ramo austríaco dessa família judaica que no início do século XIX enriqueceu em Odessa e se transferiu para Paris e Viena, onde ganhou destaque entre os banqueiros da época. Retrata a trajetória de judeus que migraram do Leste europeu atraídos pela perspectiva de ascensão econômica, social e cultural até o epílogo trágico do nazismo.
Sobre a Segunda Guerra Mundial e o período que a antecedeu, recorro a fontes clássicas como A queda da França e Ascensão e queda do III Reich, ambas de William Shirer. Mas as explicações específicas sobre a parte final da fuga e chegada ao Brasil de minha mãe e avós maternos encontrei documentadas no trabalho do historiador Fábio Koifman. No livro Quixote nas trevas, produto de sua tese de mestrado defendida em 2001 na UERJ, pude inteirar-me da atuação do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, salvando várias centenas de refugiados perseguidos pelo nazismo. Em seu posto na França, desobedeceu a política restritiva à imigração de judeus do primeiro governo de Getúlio Vargas. Concedeu vistos diplomáticos ilegais a quem o procurou ou foi a ele recomendado, como minha mãe e avós. Com a ajuda de Koifman, que me orientou em troca de e-mails, procurei entender o que se passou há oitenta anos. Tomei também conhecimento do trabalho de Avraham Milgram e seu livro Os judeus do Vaticano, editado em 1994 pela Imago. Esse historiador, agora aposentado, do Instituto Yad Vashem em Israel explica a maneira pela qual refugiados com a vida ameaçada como Hans Glasberg, meu pai, conseguiram chegar ao Brasil valendo-se de um frágil acordo entre Pio XII e o governo Vargas. Complemento com informações de David Kerzer na sua obra O Papa e Mussolini, publicada há poucos anos.
As histórias de meus pais se entrelaçam. Elas têm origem comum na geração de meus avós, nos anos da Belle Époque, quando os judeus de pequenas cidades da Europa afluíram a Viena e Berlim. Resolvi juntar as duas narrativas. Ambos tiveram os sonhos e projetos de juventude destruídos na década de 1930. Elisa estudava direito e Hans medicina. Conheceram-se a bordo do navio que os trouxe de Lisboa ao porto de Santos em 1941. Eram europeus rejeitados na Europa. Viajavam para um lugar desconhecido cujo idioma e hábitos lhes eram estranhos. Os dois contaram com a ajuda de setores da Igreja e pessoas a ela ligadas para escapar do destino sinistro de quem ficou para trás.
A força bruta do nazismo parecia invencível até 1942. Amedrontava quem não aderia. Sufocava as manifestações de solidariedade aos perseguidos.
Tento resgatar ações generosas e a coragem de pessoas que se arriscaram para amparar desprotegidos. Recorro aos arquivos do Yad Vashem para documentar o sofrimento causado pela insanidade criminosa de nazistas e colaboradores. Procuro também apontar omissos e os que apoiaram ou justificaram a discriminação racista em troca de benefício pessoal, econômico ou político.
Junto relatos de família com acontecimentos conhecidos. Não acredito que se reproduzirão de modo igual, agora ou em próximas gerações. Duvido que haja um novo Holocausto. Não se entra duas vezes na mesma água do rio, porque ele flui. A observação vem da Grécia antiga, assim como a constatação contrária de que nada surge do nada. Ou seja, nem tudo o que ocorreu no passado se repetirá no presente ou no futuro. Mas há muito desse passado no nosso presente e no futuro.
“Não se sabe seu nome. Só restou uma foto de documento da estranha mulher, com brinco, de paletó masculino e gravata, que se arriscou para salvar os Klinger.Visitava o Santuário de Lourdes para rezar, toda vez que ajudava refugiados do nazismo na zona ocupada pelos alemães a chegar à França de Vichy. Trabalhando em 1940 para um núcleo da Resistência Francesa em Bordeaux, ligado à Igreja, contou a Elisa que se penitenciava por ser prostituta. Tentei, mas não consegui, identificá-la. A informação que tenho é que acabou sendo presa e fuzilada”